top of page

A FOFOCA É SÓ O COMEÇO

  • Foto do escritor: Cartas de Cristo
    Cartas de Cristo
  • 10 de out.
  • 5 min de leitura

ree

 

Um ensaio sobre o ego e a fuga de si


Todo mundo fala dos outros. É quase instintivo. Na mesa do almoço, no trabalho, nas redes sociais, nas conversas de bar, nas mensagens de voz. Falamos sobre a vida alheia como quem respira, sem pensar. Chamamos isso de opinião, de curiosidade, de interesse, de desabafo. Mas raramente percebemos o que realmente está acontecendo dentro de nós quando fazemos isso. A fofoca parece um hábito inofensivo — e, às vezes, até divertido —, mas ela revela algo mais profundo: a dificuldade de estarmos conosco. Quando falamos dos outros, por um instante esquecemos o desconforto de estar em silêncio, o peso de refletir a própria vida. É como se cada comentário fosse uma pequena fuga, uma distração do espelho interior.


O curioso é que ninguém se considera fofoqueiro. O termo sempre serve para os outros, nunca para si. O indivíduo acredita que apenas “observa”, “avalia”, “comenta”. Mas, se prestarmos atenção, quase todo comentário sobre o outro vem de uma comparação silenciosa: “eu faria diferente”, “eu nunca cairia nisso”, “eu não sou assim” ou, “só estou comentando”. A fofoca é uma forma de reafirmação. Ao falar do outro, o indivíduo se define. E, no fundo, é disso que o ego vive: de se sentir alguém, ainda que às custas do outro. Por trás do tom leve e social, a fofoca é o exercício mais acessível da autoafirmação.


E quando não se fala, se observa. O olhar também fofoca. Nas redes, o deslizar do dedo é uma forma de comparação. O sucesso alheio se transforma em espelho da própria falta. A alegria do outro desperta incômodo. A beleza causa inveja disfarçada de admiração. A fofoca, a idolatria e o julgamento são variações de uma mesma frequência: a dificuldade de olhar para dentro. Quanto mais desconectada está a consciência de si mesma, mais precisa das histórias dos outros para existir. Assim nasce a ilusão de que há “um eu” que sabe, e um “outro” que precisa ser avaliado.


Esse mecanismo, aparentemente banal, se estende a quase tudo na vida. Idolatramos o que acreditamos não ter: a fama, o dinheiro, a beleza, a sabedoria, o poder. Chamamos de inspiração, mas muitas vezes é projeção. A idolatria é o mesmo impulso da fofoca, só que invertido. Em vez de diminuir o outro, o colocamos num pedestal. Ambos os gestos — o desprezo e a exaltação — servem à mesma fuga: evitar o confronto com o próprio vazio. Admiramos o que nos falta e desprezamos o que nos ameaça. Assim, a consciência permanece presa na comparação.


E nesse jogo, o mundo se transforma num grande palco de espelhos. Um exibe, outro observa; um julga, outro se defende; um ensina, outro inveja. Tudo vibra no mesmo campo de carência. O poder é a idolatria voltada para si; a fama, a necessidade coletiva de ser visto; o dinheiro, o símbolo moderno da segurança perdida; o prazer, o remédio temporário para o medo de sentir. Cada um desses impulsos é uma tentativa de preencher um vazio que não é material, mas existencial. O indivíduo tenta encontrar fora aquilo que só poderia ser reconhecido dentro.


Quando esse movimento se refina, ganha aparência de virtude. A espiritualidade se torna uma nova forma de disfarce. O ego troca de roupa, mas não de função. Agora ele fala de luz, de consciência, de despertar, mas continua tentando se destacar. Quer ser admirado pela pureza, seguido pela sabedoria, reconhecido pela serenidade. O ego espiritual é o mesmo personagem antigo, apenas com outro figurino. E quando a mente cansa de competir no mundo, começa a competir no templo. O discurso muda, mas o ruído permanece.


O mesmo acontece com o conhecimento. A mente que teme sentir busca refúgio nas ideias. O intelecto se torna um escudo. Estuda-se para dominar, e não para compreender. Acumula-se informação para construir segurança mental. Mas o excesso de saber, quando não é acompanhado de presença, se transforma em ruído sofisticado. O indivíduo acredita que entende o mundo, mas não percebe a si mesmo. O conhecimento sem consciência é apenas mais uma fuga elegante.


E há também as fugas invisíveis, aquelas que o mundo até aplaude. O ativismo constante, o trabalho sem pausa, o consumo disfarçado de produtividade. A correria moderna é uma forma coletiva de anestesia. Vivemos ocupados demais para perceber o que sentimos. Corremos, respondemos, publicamos, compramos, acumulamos — não por necessidade, mas por medo do silêncio. A velocidade é a droga do século. Ela mantém o ego em movimento, para que a consciência não precise parar.


Mas, quando o mental se esgota, o corpo assume o papel de esconderijo. A carência afetiva desce para o físico. O prazer se torna anestesia. O sexo, o consumo, a bebida e a droga são atalhos químicos para o mesmo propósito: silenciar o ruído interno, ainda que por instantes. O indivíduo busca esquecer-se de si, mas acorda mais vazio. E quando a repressão é grande demais, a energia explode em violência. O crime, o impulso, a raiva, o ódio — todos nascem do mesmo lugar: o medo de perder a ilusão de controle. A violência é o desespero da inconsciência tentando preservar o próprio disfarce.


Nada disso acontece em sequência. A consciência não escala degraus; ela vibra em múltiplas frequências ao mesmo tempo. O mesmo indivíduo pode fofocar, admirar, consumir, rezar, dominar, ensinar, culpar e fugir — tudo num mesmo dia, às vezes num mesmo gesto. As fugas se entrelaçam. São como vozes sobrepostas que formam um coro confuso dentro da mente. Esse coro é o ego: o ruído permanente da consciência fragmentada tentando se afirmar como real. Ele não é um personagem entre outros, é o próprio som da inconsciência tentando lembrar-se de que existe.


Mas chega um momento em que o ruído se torna insuportável. O indivíduo, cansado de suas próprias defesas, começa a perceber que nada do que faz fora resolve o desconforto de dentro. A fofoca já não distrai, o prazer já não preenche, o poder já não satisfaz, o saber já não consola. Surge então um instante de cansaço, e nesse instante — raro, mas possível — a consciência para. Quando para, o falso se desfaz. E o que aparece é a verdade.


A verdade não precisa de força, porque não compete. Ela não precisa vencer o ego; apenas sobreviver ao seu cansaço. A verdade é simples demais para ser compreendida por uma mente que se alimenta de complexidade. E quando ela surge, o ego perde o centro. O indivíduo percebe que não precisava vencer, provar, ensinar ou acumular. Basta estar. A verdade é a pausa que o ego temia. E nessa pausa, o amor nasce — não como emoção, mas como estado. O amor é a transparência do ser quando já não há necessidade de disfarce.


É na convivência que essa verdade se prova. Da porta para fora, o indivíduo representa; da porta para dentro, é revelado. A família, os vínculos, o cotidiano são o laboratório da consciência. É ali, no atrito dos dias, que o ego mostra suas faces, suas defesas, seus jogos. O amor verdadeiro não ignora a sombra, mas também não a transforma em espetáculo. Reconhece-a e atravessa. A verdade não acusa, apenas ilumina.


Quando o silêncio se instala, tudo continua acontecendo — o pensamento, o desejo, a dor, a alegria —, mas sem ruído. Porque já não há resistência. A consciência, reconciliada consigo mesma, entende que nunca houve falta, apenas distração. A demência se transforma em lucidez, a fuga em presença, o ruído em música. O amor, que antes era busca, torna-se o estado natural do ser.


Talvez tudo o que chamamos de vida não passe de um convite — silencioso, insistente — para voltarmos a nós. A fofoca, a idolatria, o vício, o poder, o prazer, a fé, o ódio... são apenas maneiras diferentes de expressar a mesma ausência. No fundo, cada uma delas tenta preencher o mesmo espaço que o silêncio preenche sozinho. A presença não é um caminho a conquistar, é uma lembrança a ser recordada. A fofoca é só o começo; o silêncio, o reencontro.

 

 
 
 
  • Youtube

Centro de Estudo Cartas de Cristo

Este site tem unicamente a intenção de ajudar na difusão do livro "Cartas de Cristo",

bem como a busca da compreensão do seu conteúdo.

bottom of page